sexta-feira, 6 de maio de 2022

Poema


Poema

Eu quero ver sangrar

eu quero ver ferver o mundo e brilhar o fogo

sentir o ar queimar

quero a terra arrasar com sal e sentir seu gosto.


Eu quero ver sangrar

e arder o medo em flor com crescente perfume

sentir a dor reinar

no circo feito em chamas aos berros o lume.


Eu quero ver sangrar 

a dor perene aqui no corpo decompondo

e ver o céu chorar

a dor tempesta e o céu gemer um choro hediondo.


Eu quero ver sangrar

em mim, em mim sangrar o sangue de meu corpo

e queimar, vou gritar

eu só quero viver cá neste corpo morto.


Eu só quero sangrar

esvaziar a dor ao qual luto e reluto

e me despedaçar

e romper os meus músculos em fé resoluto.


Eu quero ver sangrar

meus pés, eu quero ver e perder o meu caminho

para poder salgar

não dar chance ao destino, me arrasto sozinho.


Eu quero ver sangrar

a pele que vou usar até romper os seus fios

e vou me arrembentar

nas pedras em um mar gelado convulso e frio.


Vou sangrar, vou sangrar

e do mundo recuso seu afeto e seu afago,

Quero ver se acabar

queimar Cristo na Cruz com todos os diabos!

 

quarta-feira, 30 de março de 2022

Sou resto - Triolé

 


Triolé

Eu resto, sou rastro e ruína,
a parte que fica, sou resto
depois que tudo termina
eu resto, sou rastro e ruína
que aguenta a dor com a sina
de erodir só, mas enfesto
eu resto, sou rastro e ruína
a parte que fica, sou resto.


domingo, 20 de março de 2022

Rondó


Parece um meio óbvio e infantil, mas eu escrevi ele quando estava bêbado e não me lembro como...


Rondó

Um rondó se faz rimando

e teimando em se perder

no crescer da rima o verso

é perverso de compor.


Mas eu sei rimar bebendo

como quem dissolve um sonho

do real e se perdendo

eu componho em plena dor.


O real se vê na angústia

na palavra suprimida

é a verdade que se escuta

nesta a vida a decompor.


Um rondó se faz rimando

e teimando em se perder

no crescer da rima o verso

é perverso de compor.


É repetindo a loucura

se contorcendo e fugindo

 da beleza que perdura

da mentira e no torpor.


A beleza é a mentira

 um espelho que seduz.

É costura que retira

o puz que nos verte a cor.


Um rondó se faz rimando

e teimando em se perder

no crescer da rima o verso

é perverso de compor.


Beleza é mal no mundo,

que bajula e que distorce

torturando o mundo imundo

que contorce em pavor.


Reais são as formas impuras

de um cadáver apodrecido,

o ideal mata e tortura,

no enraivecido rancor.


Um rondó se faz rimando

e teimando em se perder

no crescer da rima o verso

é perverso de compor.


Se sustenta a rima o logro

de se mentir na estrutura

encadeando no jogo

a procura dum valor.


O rondó cresce sozinho

como um cancer se espalha.

O parasita no ninho,

um canalha com louvor.


Um rondó se faz rimando

e teimando em se perder

no crescer da rima o verso

é perverso de compor.


O ritmo que nos prende

na repetição e loucura,

é a realidade que se sente

na candura do terror.


Mas a mais bela crueldade

é saber que por compor

vou enxumar a realidade

pelo horror e para o horror.


E um rondó se faz rimando

e teimando em se perder

no crescer da rima o verso

é perverso de compor. 

domingo, 6 de março de 2022

Sacrifício - Rondó


Rondó Sacrifício


Uma vela acesa queima
cera e teima dar-se ao tempo,
um incenso beira ao pó,
brilha só, num fundo escuro.

Olho o mundo nesta treva,
marco um risco neste chão
pra que o sonho não se atreva
dar a ilusão de um futuro.

Rogo ao sono seu silêncio
pelo oco som da noite,
o desejo cá dispenso
no açoite de um esconjuro.

Uma vela acesa queima
cera e teima dar-se ao tempo,
um incenso beira ao pó,
brilha só, num fundo escuro.

Carregando fraco olor
tal farol num mar sem astros,
corta o fumo o véu sem cor,
estes rastros que procuro.

Rogo ao vazio sempiterno,
dos abismos, tempestades,
que trague o desejo interno.
Vaidades em que perduro.

Uma vela acesa queima
cera e teima dar-se ao tempo,
um incenso beira ao pó,
brilha só, num fundo escuro.

Onde temo estar disperso,
baixar a guarda e deixar-me
manchar de sangue meus versos
charme do fel que supuro.

Rogo ao medo os pregos, grades,
corrimões de ferro rubro
queimem as minhas vontades,
as que cubro e as que abjuro.

Uma vela acesa queima
cera e teima dar-se ao tempo,
um incenso beira ao pó,
brilha só, num fundo escuro.

Neste quarto, nesta cela 
todo o fora desfalece,
fecho todas as janelas
faço a prece meu murmuro.

Rogo ao fogo que desgasta
esse incenso, essa vela.
Que me seja a venda casta
que debela o anelo impuro. 

Uma vela acesa queima
cera e teima dar-se ao tempo,
um incenso beira ao pó,
brilha só, num fundo escuro.



quinta-feira, 3 de março de 2022

Rondó Marinho


Tirei meu rondó do mar,
para dar a voz ao morto
ao absorto esquecimento,
e o sofrimento desse sal.

Os afogados na raia,
estão esperando que os vivos
joguem as redes na praia,
serem cativos sem mal.

Sentirem estarem vivos
por mais que a mentira doa
por mais que seja aflitivo
já soa como um bom final.

Tirei meu rondó do mar,
para dar voz ao morto
ao absorto esquecimento
e o sofrimento do sal.

As redes nesta praia brilham
iguais a fantasmas queridos
pescadores que partiram
os perdidos, sem sinal.

Tempestades no horizonte
clareando o mar escuro
vão tornando azul a fronte
de um conjuro divinal.

Tirei meu rondó do mar,
para dar a voz ao morto
ao absorto esquecimento,
e o sofrimento desse sal.

Se os vivos estão festejando
os mortos choram de inveja
o mundo está fervilhando
 troveja tal carnaval.

No carnaval se permite
a liberdade da morte,
das regras tudo se omite
na norte de ser  banal.

Tirei meu rondó do mar,
para dar a voz ao morto
ao absorto esquecimento,
e o sofrimento desse sal.

Morre na praia a liberdade
de fugir de um mundo  frio,
pois é cruel a verdade
como um brio artificial.

O mundo é limiar
de tudo que não seria
 tudo morre sem vingar
na poesia em tom infernal.

Tirei meu rondó do mar,
para dar a voz ao morto
ao absorto esquecimento,
e o sofrimento desse sal.

Balanço do mar é eterno
como as juras de paixão
o memento sempiterno
da ilusão fundamental.

Morre no mar esperanças
como morrem afogadas
as memórias das infâncias,
despregadas do varal...

Tirei meu rondó do mar,
para dar a voz ao morto
ao absorto esquecimento,
e o sofrimento desse sal.

E vou arrancando da orla
os afogados, os restos
tal nácar das conchas mortas,
brilho infesto em fé irreal.

E como um louco prostrado 
ao fluxo intenso da dor
de esquecer-se e abandonado!
Neste horror irracional...  

Tirei meu rondó do mar,
para dar a voz ao morto
ao absorto esquecimento,
e o sofrimento desse sal.