Timothy Garton Ash - O Estado de S.Paulo
fonte:http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110512/not_imp718164
ESPECIAL PARA O ESTADO
Como combater com mais eficácia os populistas anti-imigração que estão  crescendo politicamente em muitos países europeus? No final deste mês,  deve ser dado o veredicto no julgamento do político holandês Geert  Wilderes, processado por suas declarações anti-islâmicas - como a de que  o Alcorão é um "livro fascista" que deveria ser proibido.
Ao mesmo tempo, o governo minoritário de centro-direita da Holanda, para  sobreviver, depende da "tolerância" do Partido da Liberdade (PVV) de  Wilders, que obteve de 15% dos votos nas últimas eleições. O preço  estabelecido por Wilders incluiu um compromisso no sentido de uma  proibição da burca.
Na Holanda, como em outras partes da Europa, os partidos de  centro-direita vêm tentando reconquistar os eleitores que apoiam  populistas avessos aos estrangeiros adotando versões menos radicais das  políticas e da retórica adotada por eles.
Julgamento. Assim, os tribunais estão sendo chamados para fazer o que os  políticos não querem. Esta é a maneira errada de agir. Tanto com base  no princípio da liberdade de expressão quanto no da prudência política,  Geert Wilders não deveria ser julgado pelo que diz sobre o Islã. Em vez  disso, os políticos democráticos da corrente dominante e outros líderes  de opinião deveriam ter mais coragem e combater aquela retórica  inflamada.
Foi o que os promotores holandeses parecem ter pensado também. "Sem  dúvida, os termos usados por ele são nocivos e ofensivos para um grande  número de muçulmanos", eles afirmaram quando o processo foi evocado pela  primeira vez. "Mas a liberdade de expressão tem papel essencial numa  sociedade democrática." Um grupo de advogados proeminentes, organizações  não governamentais e grupos de interesse apelaram ao tribunal com o  objetivo de reverter a decisão e obrigar os promotores a instaurar o  processo. O tribunal argumentou que, "ao atacar os símbolos da religião  muçulmana, ele também insultou os fiéis".
A frase deixa bem claro um problema de princípio: aproxima a linha que  separa o ataque aos fiéis da crítica da crença. Para nós, essa liberdade  de criticar qualquer crença deve prevalecer, mesmo em termos extremos.  Religião não é como a cor da pele. Não existe nenhum argumento racional  contra a cor da pele de uma pessoa. Existem argumentos racionais que  podem ser feitos contra o islamismo, o cristianismo, o budismo, a  cientologia ou qualquer crença. Esse tipo de processo tem um efeito  desalentador sobre a discussão das crenças.
No caso holandês, o contexto é mais amplo. Membros da Organização da  Conferência Islâmica há muito tempo defendem que a "difamação da  religião" seja proscrita. No país em que o diretor Theo Van Gogh foi  assassinado por ofender o Islã, o próprio Wilders precisa viver cercado  de segurança 24 horas por causa das ameaças de morte feitas por  extremistas islâmicos violentos.
Se Wilders estivesse, ele próprio, incitando as pessoas à violência,  então sim, deveria ser processado. Mas até agora, pelo que vejo, ele não  ultrapassou os limites. Enquanto isso for verdade, defendo seu direito  de dizer coisas profundamente ofensivas, pelas mesmas razões que,  recentemente, defendi o direito de uma mulher escolher usar a burca.  Wilders é, por assim dizer, o outro lado da burca.
Além desta razão de princípio, existe uma outra, forte, de caráter  prático. Como ocorreu quando David Irving foi levado a julgamento na  Áustria por negar o Holocausto, este processo permite ao acusado  apresentar-se como um mártir da liberdade de expressão. Wilders concluiu  suas declarações finais ao tribunal citando George Washington: "Se a  liberdade de expressão é retirada, então mudos e em silêncio podem ser  levados, como ovelhas, para o abatedouro".
Isso partindo de um homem que pede que o livro sagrado de cerca de 1,5  milhão de pessoas seja proibido! Dois pesos e duas medidas têm sido a  desgraça de muitas reivindicações de liberdade de expressão, mas Wilders  ganha a medalha de ouro de hipocrisia. Ele não quer apenas que a burca e  o Alcorão sejam banidos. Num discurso proferido na Câmara dos Lordes em  Londres, no ano passado - depois de uma proibição de entrada no recinto  imposta pelo secretário de Estado para Assuntos Internos ser revertida -  ele afirmou que, em todo o Ocidente, a construção de novas mesquitas  deveria ser proibida.
E não são apenas os muçulmanos que ele quer sufocar. Também seus  críticos. Sob pressão de seu partido, um famoso historiador e  comentarista cultural, Thomas von der Dunk, teve um convite para dar uma  conferência em honra de um herói holandês da resistência antinazista  anulado, depois que ele propôs comparar a imagem que o Partido da  Liberdade faz dos muçulmanos à maneira com que os judeus foram  caluniados na década de 30.
Uma música punk que se refere a Wilders como o "Mussolini dos Países  Baixos" foi proibida num festival em comemoração à libertação da Holanda  do nazismo. Um produtor de TV, de esquerda, tirou de seu site um  desenho mostrando Wilders como um guarda de um campo de concentração  depois de ameaças à sua equipe. Em resumo, a ideia de liberdade do  partido é que Wilders seja livre para chamar o Alcorão de fascista, mas  ninguém tenha liberdade para chamá-lo de fascista.
Os partidos de centro-direita, que dependem da "tolerância" de Wilders  para sua sobrevivência no poder, consentem e procuram apaziguar essa  intolerância. Sim, o prefácio do acordo de coalizão tem uma frase  dizendo que o Partido da Liberdade e Democracia Popular (VVD) e a  Aliança Democrática Cristã (CDA) veem o islamismo como uma religião e o  tratarão de acordo, ao contrário do PVV. Como em muitos outros países  europeus, os partidos de centro-direita dominantes procuram rapidamente  apaziguar e seguir os populistas intolerantes, anti-imigrantes e  antimuçulmanos, da mesma maneira que os partidos de centro-esquerda se  curvam para aquietar as vozes intolerantes da autoproclamada "comunidade  muçulmana".
Rigor. Um grupo de trabalho do Conselho da Europa sugeriu um enfoque  diferente. No relatório, intitulado Vivendo juntos: combinando  diversidade e liberdade na Europa do século 21, argumentamos que as  sociedades europeias devem ser rigorosas, exigindo uma liberdade  igualitária com base numa única lei. Deve existir um liberalismo  vigoroso da parte do amplo centro democrático. Mas não devemos exigir  que os imigrantes abandonem sua fé, sua cultura ou múltiplas  identidades. Mensagens de intolerância e xenofobia, como as oferecidas  por Wilders, devem ser combatidas no tribunal da opinião pública, não  nos tribunais de Justiça.
Políticos, intelectuais, jornalistas, empresários, esportistas, todos  devem se mobilizar para convencer a opinião pública europeia de que,  enquanto as pessoas respeitarem as regras básicas de uma sociedade  livre, elas têm direito a ser cidadãs com direitos iguais e plenos como  qualquer outra pessoa - sejam muçulmanos, cristãos, ateus ou  zoroastrianos.
Se Wilders deve ser livre para dizer que o Alcorão é fascista, von der  Donk deve ter liberdade para compará-lo aos nazistas - e os políticos  têm de sair a campo e lutar por uma boa causa em vez de usar a Justiça. /  TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É PROFESSOR DE ESTUDOS EUROPEUS NA UNIVERSIDADE OXFORD
 
 
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