segunda-feira, 18 de novembro de 2013
FIGUEIREDO, Juvêncio de Araújo
NUM SONHO
- Lá vai, velas ao vento, o brigue Flor das Águas;
Lá vai, garbosamente, em procura do Norte.
E alegre chegará? Quem sabe lá das mágoas
da sua gente? E quem já lhe notou a sorte?
Mágoas! Quem nunca as teve? Eu, pelo menos, trago-as
desde o dia fatal em que, olhando a morte,
o meu noivo vagara aflito, envolvido nas fráguas,
dos bruscos vagalhões em terríveis corte;
Assim falava Rosa às queridas amigas...
E dentre o lindo rol das meigas raparigas,
rita pôs-se a cismar na vida de Lourenço.
Vira-o no mar profundo e revolto de um sonho,
nas angústias fatais de um naufrágio medonho,
a gritar e a acenar convulsivamente um lenço.
NA CRUZ
À alma torturada de Carlos de Faria
Quem pregou nessa cruz esses teus frágeis braços?
Quem te lançou à boca a esponja da tortura?
E sobre teu anseio a mudez dos espaços?
E diante dos teus pés uma planície escura?
Quem te rasgou do peito, a execrandos lançados,
todo esse coração onde a tua alma, pura,
sonhava a doce paz bendita dos regaços,
todo o meigo e efluvial clarão de uma ventura?
Ah! Quando o fundo olhar nesses tormentos cravo,
de tudo me recordo, e essas tristezas cavo,
como quem cava o chão frio de um cemitério.
Numa hora de repouso, e de recolhimento,
eu sei o que é a dor, de momento a momento,
passando sobre ti no seu carro funéreo.
AMARGA IRONIA
Eis-me junto de um túmulo fechado,
Onde reclino a fronte quase fria.
Quero escutar, digo eu, a litania
De um coração que aqui jaz enterrado.
Nisso, de dentro, parte um sonho magoado,
De uma profunda e vaga nostalgia.
Quem és? E o som responde-me: - Maria,
A tua filha, o teu amor sonhado!
Um frio, então, tragicamente horrendo,
Passa-me os ossos; e me vai roendo
As carnes que afinal se espedaçavam!
Mas fiquei por saber se o som tristonho
Era o dessa ovelinha, n’algum sonho,
Ou era o dos vermes que de mim zombavam!
ALMA ANTIGA
Todo o amaino que encontras nesta cama,
Nestes lençóis tão alvos e aromados,
Vem de uma clara e misteriosa chama
Que te segue, dos tempos já passados...
E não na vês, na delicada trama
Da sorte! Não na vês, nos teus cuidados!
Mas ei-la neste leito; e se derrama
Como por sobre o mar óleos sagrados...
É que, por certo, um dia, um leito deste
A quem, passando num lugar agreste,
Sentira as pernas bambas de fadiga.
E se buscares todos os segredos
Do teu passado, encontrarás os ledos
Florescimentos da tua alma antiga.
VOLTANDO À TERRA
Dize, por que razão me vens bater à porta,
altas horas da noite, assim de olhar tão triste,
que não sei como, ao vê-lo, a minha alma o suporta,
se há muito tempo já da terra sumiste?
E o que desejas tu, se há muito tempo és morta,
se, com certeza, ao lindo e largo céu subiste
como uma águia de luz, que as amplidões recorta,
e sobe, e por lá fica, e a paz do céu assiste?
E ela, os olhos volvendo, as mãos alevantando,
e abrindo a boca em flor e a cabeça meneando
pôs-se, então, a falar da nossa mocidade...
Disse que à terra vinha, unicamente, apenas,
para às suas unir as minhas grandes penas,
no consolo bendito e humano da saudade.
Cena Real
Rita fora tirar mariscos ao mar-grosso,
Para dar de comer aos pequeinos filhos
Que eram, do seu amor, os mais fortes cadilhos
Numa pobreza atroz, de sombras de arcabouço.
Prendeu um samburá à curva do pescoço,
E buscou do rochedo os últimos rastilhos,
Temendo o grande mar que, em cada vaga, trilhos
Abre a cada momento. E cada vaga é um poço.
Mas uma vaga veio; e mais outras... Montanhas
De água vieram... E treme o seu peito de estranhas,
Profundas emoções! Ei-la, agora, rolando
Por êsse mar revolto! (Ah! Tristíssima cena!)
Com um trapo da saia ela, cheia de pena,
Diz aos filhos adeus, e êstes choram, gritando!...
Suicida
Do bordo do lanchão pôs-se a fitar o espaço,
Que tão cheio de luz se achava! Quantos astros,
Quantos mundos rolando, enlaçados em nastros,
Da eterna vibração, no infinito compasso!
Quis estender ao céu o seu pequeno braço,
Mas recuou porque, muito distante, os rastros
Dêsses mundos de luz lhe dariam cansaços;
E êles não são, por certo, os santelmos mastros...
-Quem pudesse morrer! (Disse êle) e, nesse instante,
Olha as águas do mar e vê um céu faiscante;
E dentro dêsse céu, a gôndola da lua...
Arroja-se de chofre, então, ao mar e morre,
mas, por tôda a enseada, uma lenda ainda corre:
Dizem que a alma do Zé nas ânsias continua...
Ilusão
Sopra rijo o nordeste. Anselmo vem à popa
De um leve batelão. Vem, contente, a cantar...
Nem se lembra que está sobre as ondas do mar:
E, destemido, d'água o largo pano ensopa.
A leve embarcação embaraços não topa,
Metida a quilha ao vento... É um passaro a voar...
Rumo da praia irá, num seio descançar,
De bôjo para cima, embutido de estôpa.
Mas , junto ao Cambirela, onde há um precipício,
Que a tanta gente dá o eterno sacrifício
Da morte, ei-la emborcada, a leve embarcação.
E nunca mais ninguém viu o pobre Anselmo:
Menos quem o tanto amou, e, na luz do santelmo,
Parece vê-lo sempre... E crê nessa ilusão!
A Rendeira
Que lindas rendas faz a saudosa rendeira,
Que horas passa sentada ao correr do portal,
De onde escuta a carriça a chilrear na lareira,
E o canário a chilrear no flóreo laranjal!
Aprecio-lhe o gôsto e a sublime maneira
Com que faz tanta renda, assim, para o enxoval,
Vai casar-se na ermida alegre da ladeira,
E fêz, duma camisa, um lírio original.
No momento em que a vi, a tarde feiticieira
Era uns veios de luz piedosa, espiritual...
E chegava da pesca uma leve baleeira.
Houve, então, um rumor de beijos no quintal...
E em cada humilde e bom olhar dessa rendeira
Cantava a rima azul de um sonho virginal.
FIGUEIREDO, Juvêncio de Araújo. Poesias: edição comemorativa do centenário. Florianópolis: s.n, 1966. 311p.
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