domingo, 6 de outubro de 2024

Livro dos Sonhos Esquecidos. Autor desconhecido. Tomo I. Pag. 876.482.718.901


Elas são e não são, ao mesmo tempo, etéreas como a poeira que brilha no rastro de luz de uma janela. Estas pequeninas almas somem e reaparecem, fugidias entre qualquer certeza; só se manifestam no limiar entre a claridade e a sombra. Nadam no vento como plânctons e esquivam-se fácil de qualquer toque.

Elas brilham e brincam como crianças num parque, num tom infantil, fisgando pedaços de poeira. Fazem da poeira, estes pequenos rastros de nossas figuras colossais, o divertimento e o sustento de suas existências. Vestem-se com nossos restos de pele, como se nos imitassem, costurando com fios ínfimos figurinos variados, como se fossem imitações jocosas de nossa moda. Montam casas e tendas que confundiríamos com pequenas bolotas de sujeira que, por vezes, aparecem embaixo dos móveis, quando esfregamos tapetes, quando limpamos nossas casas.

Pouco sei de seus hábitos e do tempo que vivem; pouco sei de seus filhos ou se eles os possuem, ou se nascem de algum lugar. Apenas notei pouco, pois ao observar suas existências, um simples movimento destruía qualquer coisa feita por elas, deslocando-as no turbilhão que o mover de um músculo provocava.

Senti-me um monstro ao tentar observá-las; toda a minha interação, todo meu esforço de eternizá-las resultava na destruição de suas vidas. Para estudá-las, precisaria destroçá-las com a minha interferência.

Mas ao voltar aos lugares que destruí, daquelas pequenas povoações que escolhi para tal sacrifício, senti-me mal, enojado de minha significância. Lá estavam elas de novo; haviam-se reconstruído. Mas o pior: meus traços e meus restos se reorientaram e, como uma cópia forçada de meu ser, de meu estilo, de minha estética, aqueles novos remanescentes remontavam aquilo que seriam suas próprias imagens, seus hábitos e suas identidades.

Eram como um pequeno eco, onde nós, titãs ou o que seja, éramos a morte. A vida deles depende de nossa passagem, mas só podemos ser um passado de caos. Um caos de onde eles trilhariam seus caminhos, ergueriam um mundo a partir de nossas pegadas. Mas somos a destruição e a morte para eles; a nossa volta resulta no fim de um mundo e no início de outro.

Devo ser como os deuses nos são: partir para nunca mais voltar, deixar que nossas pegadas trabalhem por nós.

Livro dos Sonhos Esquecidos. Autor desconhecido. Tomo I. Pag. 876.482.718.901

Livro dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo M pág. 32.347


Aqueles que não têm nome, nem mesmo a ideia de um rosto. São aqueles que vivem dentro das frestas, entre portas semiabertas e nos cantos de nossa visão. Eles apenas observam e, nos lugares nunca convidados, eles sempre estão, mas nunca são. A gente não sabe de onde vieram ou o que eles querem. Alguns de nós sugerem que eles são existências semi-completas, algo entre o ser e o não ser. Já outros de nós acreditam que eles são gerados pela essência da inveja, como pequenos frutos sem semente. Mas ninguém sabe ao certo o que eles são, apenas que estão ali a nos observar. Nós somos nós e eles são eles.

Livro dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo M, pág. 32.347.


sábado, 5 de outubro de 2024

Coringa

 


Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo A. Pág. 21.114

link da imagem


É um jardim em algum lugar. Como se feito para alguém, em algum lugar onde o sol sempre está a morrer. Com uma iluminação de branca para azulado, onde tudo é tingido por um aspecto fantasmal, em lâmpadas suspensas por postes de ferro fundido, trabalhado sob cinzel. Tem também bancos brancos cobertos com curiosas espécies de trepadeiras, de aspecto frágil e pequenas flores quase transparentes, como se fosse uma espécie de rede. Eram bancos que estariam muito mais agradáveis se estes tivessem indícios de já terem sido usados, mas, como tudo ali, transpareciam estarem imbuídos de uma falta, um vazio incerto, como se estivesse com uma peça faltando.

Tudo ali transparece como se faltasse algo, mas é inquestionavelmente belo, como toda melancolia terna pode ser. Podia-se sentir algum mundo incerto luzir lá fora, com as luzes de uma cidade infesta. Mas lá, no real que contrasta com as imagens daquela cidade colorida, a imperturbável solidão reina sobre aquele verde pálido, sobre aqueles galhos frágeis e a presença indiferente de pirilampos e mariposas.

Nuvens de efemérides giram numa tentativa vaga de felicidade, buscando se acasalarem antes que as suas energias se extingam, e parem assim de refletir as luzes das lâmpadas e findem no breu daquele chão. Morrem na mesma indiferença em que as luzes dos apartamentos na paisagem se apagam de vez em quando.

Uma leve garoa acaricia a pele daqueles que se aventuram a adentrar no jardim. Longe das luzes, se pode sentir um leve roçar, como se um vento lhe lembrasse daquele beijo não dado. As plantas deslizando sobre seu rosto como o toque de quem estás a desejar, como se cada elemento presente naquele lugar fizesse de algum modo lhe recordar a chance perdida, o desejo não saciado, o medo que rege toda a insegurança, o passo não dado. E é um deleite, como é em si o desejo, como é em si a paixão e a pena de si próprio, o acalanto da inevitabilidade, o fracasso esperado.

Quem criou este jardim, em seu sonho ou delírio, estava imerso nas águas da frustração, pois, caminhando nele, seguindo as lâmpadas que se envergam como monges solitários, pode-se encontrar uma estrutura fantástica. Como um templo, vários pilares se erguem de modo peculiar: caso os contorne, poderás perceber que formam um estranho círculo, e, olhando para seu centro, tens a sensação de um lugar muito mais vasto do que esperavas.

Caso se resolva percorrer e conhecer o centro do jardim, ele te levará facilmente. E nele tem uma sombra, ou uma árvore retorcida, que se projeta sinuosamente entre toda aquela estrutura. Nela tem apenas parcas flores vermelhas, como sangue coagulado. Nela se percebia um certo cansaço, como aqueles chorões que crescem entre o asfalto e o concreto. Mas ela estava lá, abrindo caminho, como um colossal gigante deformado, com seus inúmeros dedos nodosos. Era a árvore central, a maior e a primeira, a mais humana. E estava nela escrita violentamente, arranhada como quem arranha seu próprio sepulcro, apenas uma coisa, milhares e milhares e milhares de vezes reescrita, uma súplica: “Me perdoe, me esqueça.”

Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo A. Pág. 21.114.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Canção de Ninar 1ª.

Mas, é não querer dormir,
tendo outro  novo dia,
medo dessas fiandeiras
que tecendo por porfia
vertem lenços de rotinas,
feito inveja e covardia.

Mas, mas é querer dormir,
sem  perder-se na tormenta
como o velho marinheiro
que no mar não se atormenta
pois sua casa virou mar...
Outro mar não mais lhe esquenta...

Mas, é só querer dormir
tendo o mundo lá girando
doutro lado da procela
todo mundo se afogando...
Ondas batem na janela,
nos lençóis vou afundando...